“O livro é melhor que o filme.” Quem nunca ouviu essa frase?
Ou mais, quem nunca a disse? Para mim, essa frase causa calafrios. Soa como “o
presunto é melhor que a lâmpada”. Alguém mais afável diria que depende da
ocasião. Eu pergunto logo “O que uma coisa tem a ver com a outra?” Ambos se
iniciam com a palavra para sua produção. A aproximação poderia parar aí. Recorrer
a uma adaptação, ponto de partida para a temida frase, não alivia. A questão é:
fomos condicionados, através da própria evolução do cinema a compará-lo com a
literatura, sobretudo a prosa. Como isso aconteceu e pode deixar de acontecer é
o que você lerá nas próximas linhas.
No início do século passado, o cinematógrafo era visto como curiosidade
científica. Após apenas dois anos, Georges Melies, na Europa e Edwin S. Porter,
nos EUA, introduziram o elemento artístico ao invento, através dos filmes
“Viagem à Lua” (1902) e “O Grande Roubo do Trem” (1903). Ainda aperfeiçoando os cortes, que
permitiu maior duração aos filmes, troca de ambientes, etc, Sergei Eisenstein,
na URSS e D.W. Griffith, nos EUA, adicionaram fundamentos ideológicos à técnica
finamente estruturada. Revolucionários na superfície, mantiveram raízes na
tradicional literatura, em filmes como “A Greve” (1924) , do soviético e “Intolerância”
(1916) do norte- americano. O método “começo-meio-fim” custou a ser desafiado.
Somente em 1942, o também norte-americano Orson Welles
idealizou “Cidadão Kane”, rompendo com a narrativa linear ao contar a história
de Charles Foster Kane. No entanto, a lógica e estrutura dessa história era
absolutamente linear. Em sua genialidade, Welles não cortou o cordão umbilical
entre cinema e literatura. No entanto, com diálogos sobrepostos, distanciou-se
da escola teatral. Muitos outros avanços foram vistos na obra de Welles, como
uso da profundidade de campo.
O neo-realismo italiano foi o primeiro a englobar a técnica
documental, no início da década de 40, também pela necessidade, pois a Europa
estava devastada pela guerra. Porém foi Michelangelo Antonioni, paralelo a
escola neo-realista, que registrou e dialogou sobre o impasse das classes
dominantes de maneira não só realista, mas cinematográfica. Com seus
tempos-mortos, deu outro ritmo, distanciando da literatura.
Pouco antes disso, John Ford aperfeiçoou a técnica de “O grande
roubo do trem”, fazendo do western o gênero nativamente cinematográfico. A
dialética da conquista do Oeste Americano foi vista em planos inovadores e
cortes frenéticos, ditados pela ação. Ainda mais próprio para o cinema, veio o
suspense ou thriller, pelas lentes de Alfred Hitchcock. O inglês condicionou
literatura, música, teatro, grafismo em um gênero novo, perfeito para o cinema,
com a intensidade que somente a tela grande pode proporcionar. Uma verdadeira
simbiose de artes. Experimente ver trechos de filmes de gêneros variados sem a
trilha musical, por exemplo, e constatará que o suspense será o mais
irreconhecível, em relação ao original, com áudio.
A ruptura final veio na movimentada década de 60, com Jean-Luc
Godard, Alain Resnais, Stanley Kubrick, Ingmar Bergman e também o brasileiro Glauber
Rocha, entre outros. Estruturando as imagens muito mais pela memória, ideias e
sensações, romperam não só com a forma literária, mas também, com regras do
próprio cinema, como campo-contracampo, sincronia e tempo-espaço. Infelizmente
esse cine revolução está para o cinema de hoje como, na moda, as passarelas
estão para as vitrines. Apenas uma vaga ideia da ousadia e libertação que a
arte pode atingir.
A velocidade da película (ou dos bytes) atropela por vezes a
verticalidade complexa de elementos de uma obra cinematográfica. Absorver
apenas o texto é ver pela metade. Até menos. É impensável que a história de um
livro lido em dias pode ser totalmente retratada e absorvida em duas horas. Cinema
é muito mais do que contar histórias. Dar apenas um propósito a ele é
limitá-lo.
Filmografia básica (básica mesmo, para não desanimar ninguém):
Ladrões de Bicicleta, 1948 (Victorio de Sicca)
Rocco e seus irmãos, 1960 (Luchino Visconti)
Blow Up, 1966 (Michelangelo Antonioni)
No tempo das diligências, 1939 (John Ford)
Um corpo que cai, 1958 (Alfred Hitchcock)
Acossados, 1960 (Jean-Luc Godard)
O ano passado em Marienbad, 1961 (Alains Resnais)
Persona, 1966 (Ingmar Bergman)
8 e meio, 1963 (Federico Fellini)
Deus e o Diabo na Terra do Sol, 1964 (Glauber Rocha)
2001 - uma odisseia no espaço, 1969 (Stanley Kubrick)
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