terça-feira, 4 de junho de 2013

O livro é melhor que o filme



“O livro é melhor que o filme.” Quem nunca ouviu essa frase? Ou mais, quem nunca a disse? Para mim, essa frase causa calafrios. Soa como “o presunto é melhor que a lâmpada”. Alguém mais afável diria que depende da ocasião. Eu pergunto logo “O que uma coisa tem a ver com a outra?” Ambos se iniciam com a palavra para sua produção. A aproximação poderia parar aí. Recorrer a uma adaptação, ponto de partida para a temida frase, não alivia. A questão é: fomos condicionados, através da própria evolução do cinema a compará-lo com a literatura, sobretudo a prosa. Como isso aconteceu e pode deixar de acontecer é o que você lerá nas próximas linhas.

No início do século passado, o cinematógrafo era visto como curiosidade científica. Após apenas dois anos, Georges Melies, na Europa e Edwin S. Porter, nos EUA, introduziram o elemento artístico ao invento, através dos filmes “Viagem à Lua” (1902) e “O Grande Roubo do Trem” (1903). Ainda aperfeiçoando os cortes, que permitiu maior duração aos filmes, troca de ambientes, etc, Sergei Eisenstein, na URSS e D.W. Griffith, nos EUA, adicionaram fundamentos ideológicos à técnica finamente estruturada. Revolucionários na superfície, mantiveram raízes na tradicional literatura, em filmes como “A Greve” (1924) , do soviético e “Intolerância” (1916) do norte- americano. O método “começo-meio-fim” custou a ser desafiado.

Somente em 1942, o também norte-americano Orson Welles idealizou “Cidadão Kane”, rompendo com a narrativa linear ao contar a história de Charles Foster Kane. No entanto, a lógica e estrutura dessa história era absolutamente linear. Em sua genialidade, Welles não cortou o cordão umbilical entre cinema e literatura. No entanto, com diálogos sobrepostos, distanciou-se da escola teatral. Muitos outros avanços foram vistos na obra de Welles, como uso da profundidade de campo.

O neo-realismo italiano foi o primeiro a englobar a técnica documental, no início da década de 40, também pela necessidade, pois a Europa estava devastada pela guerra. Porém foi Michelangelo Antonioni, paralelo a escola neo-realista, que registrou e dialogou sobre o impasse das classes dominantes de maneira não só realista, mas cinematográfica. Com seus tempos-mortos, deu outro ritmo, distanciando da literatura.

Pouco antes disso, John Ford aperfeiçoou a técnica de “O grande roubo do trem”, fazendo do western o gênero nativamente cinematográfico. A dialética da conquista do Oeste Americano foi vista em planos inovadores e cortes frenéticos, ditados pela ação. Ainda mais próprio para o cinema, veio o suspense ou thriller, pelas lentes de Alfred Hitchcock. O inglês condicionou literatura, música, teatro, grafismo em um gênero novo, perfeito para o cinema, com a intensidade que somente a tela grande pode proporcionar. Uma verdadeira simbiose de artes. Experimente ver trechos de filmes de gêneros variados sem a trilha musical, por exemplo, e constatará que o suspense será o mais irreconhecível, em relação ao original, com áudio.

A ruptura final veio na movimentada década de 60, com Jean-Luc Godard, Alain Resnais, Stanley Kubrick, Ingmar Bergman e também o brasileiro Glauber Rocha, entre outros. Estruturando as imagens muito mais pela memória, ideias e sensações, romperam não só com a forma literária, mas também, com regras do próprio cinema, como campo-contracampo, sincronia e tempo-espaço. Infelizmente esse cine revolução está para o cinema de hoje como, na moda, as passarelas estão para as vitrines. Apenas uma vaga ideia da ousadia e libertação que a arte pode atingir.

A velocidade da película (ou dos bytes) atropela por vezes a verticalidade complexa de elementos de uma obra cinematográfica. Absorver apenas o texto é ver pela metade. Até menos. É impensável que a história de um livro lido em dias pode ser totalmente retratada e absorvida em duas horas. Cinema é muito mais do que contar histórias. Dar apenas um propósito a ele é limitá-lo.

Filmografia básica (básica mesmo, para não desanimar ninguém):

Ladrões de Bicicleta, 1948 (Victorio de Sicca)
Rocco e seus irmãos, 1960 (Luchino Visconti)
Blow Up, 1966 (Michelangelo Antonioni)
No tempo das diligências, 1939 (John Ford)
Um corpo que cai, 1958 (Alfred Hitchcock)
Acossados, 1960 (Jean-Luc Godard)
O ano passado em Marienbad, 1961 (Alains Resnais)
Persona, 1966 (Ingmar Bergman)
8 e meio, 1963 (Federico Fellini)
Deus e o Diabo na Terra do Sol, 1964 (Glauber Rocha)
2001 - uma odisseia no espaço, 1969 (Stanley Kubrick)
 

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