quinta-feira, 20 de junho de 2013

Máscaras, Primaveras e Propaganda



O fogueteiro Guy Fawkes

Um inglês chamado Guy Fawkes, com um bigode ridículo como o século XVII pedia e cara de bravinho, junto a alguns católicos insatisfeitos, resolveu explodir o parlamento inglês, em 1605. A ideia era explodir junto o rei protestante Jaime I. Mas caguetaram tudo! Guy, que era o especialista em pólvora, foi pego, torturado e enforcado. Porém, seu rostinho sapeca foi imortalizado. Aliás, você o viu muitas vezes, nessa semana mesmo.


Expressões, símbolos e estratégias que estão sendo usadas nos protestos que param todo país nesse momento podem ser vistos em diversos filmes. Bom momento para entender melhor os pormenores desse momento histórico ou apenas dar uma pausa nisso tudo e assistir a bons filmes.


HQ "V for Vendetta", traduzido para o português
A história verídica da chamada “Conspiração da Pólvora”, descrita no primeiro parágrafo, serviu de base para a HQ “V for Vendetta”, de Alan Moore e David Lloyd, publicado em 1983. Nela, os planos explosivos de Guy se concretizam. Retratando uma sociedade que vive sob um governo autoritário, controlador da privacidade e cruel, a HQ foi adaptada para o cinema 23 anos depois, pelos irmãos Wachnowski, diretores da série Matrix e fãs das HQs de Moore e Lloyd.  A estreia de James McTeigue na direção de longa metragens fez muito sucesso, com Natalie Portman no papel principal: uma jovem cujos pais foram assassinados numa guerra pré-fascismo, é resgatada pelo líder do movimento contra a opressão do governo, um misterioso sujeito de máscara. A tal máscara replica o rosto emblemático de Guy Fawkes e é usada tanto na HQ quanto no filme. O design de produção do longa é de Owen Paterson, o mesmo da trilogia Matrix e de, pasme, Priscila, a Rainha do Deserto.


Se a máscara com o rosto de Guy é o símbolo visual dos protestos, o termo Primavera repercutiu na mídia geral. Trata-se de uma alusão a Primavera de Praga, de 1968. Um líder reformista da antiga Tchecoslováquia chegou ao poder do país e chacoalhou a ordem soviética vigente, liberando a economia e aumentando a liberdade de imprensa, entre outras medidas para “desestalinizar”.  Mas a União Soviética acabou com a farra, retomou o poder e acabou com todas as reformas.  Tudo isso de janeiro a agosto daquele ano. O período é o pano de fundo do filme “A insustentável leveza do ser”, de 1987, dirigido por Philip Kaufman. 


Daniel Day-Lewis e Juliette Binoche em "A insustentável leveza do ser"
No filme, os personagens de Daniel Day-Lewis e Juliette Binoche ilustram respectivamente a leveza e o drama, este inerente e se sobrepondo ao primeiro, no momento em que os tanques invadem a Tchecoslováquia e mudam a vida de todos os personagens. O contraste entre os momentos de paz e protestos/repressões também é composto pela fotografia em cores e p&b e evidenciado pela montagem de Walter Murch.


Na Primavera de Praga, a população, que na maior parte apoiava as reformas, era instruída por emissoras de rádio, de maneira bem interessante. Aficionados por radiotransmissores pensaram num sistema que impossibilitava a triangulação do sinal. Cada emissora transmitia suas informações por apenas 9 minutos. 



A grande mídia também vem sendo confrontada com a nova realidade. As opiniões políticas são cada vez mais pautadas pelas mídias sociais. Mas como sabemos, nem sempre foi assim. Troque mídia por publicidade e protestos por eleições e você terá os ingredientes do filme “No”, que também nos ajuda a entender como se constrói o posicionamento político de um povo.  O diretor Pablo Larraín recriou os bastidores do plebiscito que tirou Pinochet do poder no Chile após 15 anos, em 1988.

Cores e texturas do final da década de 80 no filme "No"
O diretor utilizou uma câmera da época, adquirida por um site de leilões, igualando organicamente filmagens e imagens de arquivo. No filme indicado ao Oscar desse ano, Gael Garcia Bernal interpreta um publicitário de sucesso que é convidado pela esquerda a criar a campanha contrária a Pinochet. Aos poucos, convence os militantes a substituir os pesados discursos políticos por uma linguagem otimista e moderna. Isso rapidamente faz com quem os indecisos se unam e votem por uma nova ordem política.


Agora convido os fãs de cinema a exercitar a imaginação: qual diretor brasileiro poderia retratar, e como retrataria, a nossa “Revolta dos 20 centavos”?

terça-feira, 4 de junho de 2013

O livro é melhor que o filme



“O livro é melhor que o filme.” Quem nunca ouviu essa frase? Ou mais, quem nunca a disse? Para mim, essa frase causa calafrios. Soa como “o presunto é melhor que a lâmpada”. Alguém mais afável diria que depende da ocasião. Eu pergunto logo “O que uma coisa tem a ver com a outra?” Ambos se iniciam com a palavra para sua produção. A aproximação poderia parar aí. Recorrer a uma adaptação, ponto de partida para a temida frase, não alivia. A questão é: fomos condicionados, através da própria evolução do cinema a compará-lo com a literatura, sobretudo a prosa. Como isso aconteceu e pode deixar de acontecer é o que você lerá nas próximas linhas.

No início do século passado, o cinematógrafo era visto como curiosidade científica. Após apenas dois anos, Georges Melies, na Europa e Edwin S. Porter, nos EUA, introduziram o elemento artístico ao invento, através dos filmes “Viagem à Lua” (1902) e “O Grande Roubo do Trem” (1903). Ainda aperfeiçoando os cortes, que permitiu maior duração aos filmes, troca de ambientes, etc, Sergei Eisenstein, na URSS e D.W. Griffith, nos EUA, adicionaram fundamentos ideológicos à técnica finamente estruturada. Revolucionários na superfície, mantiveram raízes na tradicional literatura, em filmes como “A Greve” (1924) , do soviético e “Intolerância” (1916) do norte- americano. O método “começo-meio-fim” custou a ser desafiado.

Somente em 1942, o também norte-americano Orson Welles idealizou “Cidadão Kane”, rompendo com a narrativa linear ao contar a história de Charles Foster Kane. No entanto, a lógica e estrutura dessa história era absolutamente linear. Em sua genialidade, Welles não cortou o cordão umbilical entre cinema e literatura. No entanto, com diálogos sobrepostos, distanciou-se da escola teatral. Muitos outros avanços foram vistos na obra de Welles, como uso da profundidade de campo.

O neo-realismo italiano foi o primeiro a englobar a técnica documental, no início da década de 40, também pela necessidade, pois a Europa estava devastada pela guerra. Porém foi Michelangelo Antonioni, paralelo a escola neo-realista, que registrou e dialogou sobre o impasse das classes dominantes de maneira não só realista, mas cinematográfica. Com seus tempos-mortos, deu outro ritmo, distanciando da literatura.

Pouco antes disso, John Ford aperfeiçoou a técnica de “O grande roubo do trem”, fazendo do western o gênero nativamente cinematográfico. A dialética da conquista do Oeste Americano foi vista em planos inovadores e cortes frenéticos, ditados pela ação. Ainda mais próprio para o cinema, veio o suspense ou thriller, pelas lentes de Alfred Hitchcock. O inglês condicionou literatura, música, teatro, grafismo em um gênero novo, perfeito para o cinema, com a intensidade que somente a tela grande pode proporcionar. Uma verdadeira simbiose de artes. Experimente ver trechos de filmes de gêneros variados sem a trilha musical, por exemplo, e constatará que o suspense será o mais irreconhecível, em relação ao original, com áudio.

A ruptura final veio na movimentada década de 60, com Jean-Luc Godard, Alain Resnais, Stanley Kubrick, Ingmar Bergman e também o brasileiro Glauber Rocha, entre outros. Estruturando as imagens muito mais pela memória, ideias e sensações, romperam não só com a forma literária, mas também, com regras do próprio cinema, como campo-contracampo, sincronia e tempo-espaço. Infelizmente esse cine revolução está para o cinema de hoje como, na moda, as passarelas estão para as vitrines. Apenas uma vaga ideia da ousadia e libertação que a arte pode atingir.

A velocidade da película (ou dos bytes) atropela por vezes a verticalidade complexa de elementos de uma obra cinematográfica. Absorver apenas o texto é ver pela metade. Até menos. É impensável que a história de um livro lido em dias pode ser totalmente retratada e absorvida em duas horas. Cinema é muito mais do que contar histórias. Dar apenas um propósito a ele é limitá-lo.

Filmografia básica (básica mesmo, para não desanimar ninguém):

Ladrões de Bicicleta, 1948 (Victorio de Sicca)
Rocco e seus irmãos, 1960 (Luchino Visconti)
Blow Up, 1966 (Michelangelo Antonioni)
No tempo das diligências, 1939 (John Ford)
Um corpo que cai, 1958 (Alfred Hitchcock)
Acossados, 1960 (Jean-Luc Godard)
O ano passado em Marienbad, 1961 (Alains Resnais)
Persona, 1966 (Ingmar Bergman)
8 e meio, 1963 (Federico Fellini)
Deus e o Diabo na Terra do Sol, 1964 (Glauber Rocha)
2001 - uma odisseia no espaço, 1969 (Stanley Kubrick)