sexta-feira, 4 de abril de 2014

Agora é que são elas

Na década de 50, o doutor William Masters, especialista em obstetrícia, iniciou uma série de estudos sobre a sexualidade e as reações do corpo aos estímulos sexuais. Contando com a ajuda inusitada mas providencial de uma ex-cantora que se tornou sua assistente, Virginia Johnson, Masters trilhou um difícil caminho de resistência à sua pesquisa, no próprio hospital-escola em que atendia. Essa é a história real contada no livro “Masters of sex”, que foi adaptada para série de TV exibida pela Showtime e que esse ano vai para sua segunda temporada.

Masters entendeu com os estudos do psicanalista Sigmund Freud e, posteriormente, do entomologista Alfred Kinsey, que o modelo de pesquisa adotado para entender a sexualidade era em grande parte baseado no “achismo”, com entrevistas e pouco baseado na ciência e na observação. Assim, Masters chegou a conclusão clara de que ninguém naquela época de fato entendia qualquer coisa de sexo, principalmente sobre a sexualidade feminina.

Exatamente aí que entrou a importância de Virginia, uma mulher a frente de seu tempo, duas vezes divorciada, dissociando o sexo do amor, algo que assustou os homens com quem se relacionou e livre de tabus, mais que o próprio Masters, um homem curioso e com poucos preconceitos, que no entanto levava um casamento distante e frio. Os dois simbolizam alguns dos arquétipos desse período em que as prostitutas entendiam mais de sexualidade que os médicos, em que poucas mulheres chegavam ao clímax, os homens não entendiam porque falhavam, outros não sabiam como lidar com o interesse pelo mesmo sexo e até a prevenção de câncer no colo do útero era assunto combatido. Esse é o panorama abordado nessa série provocativa e envolvente, com uma charmosa e eficaz ambientação da época contrapondo uma edição ágil e moderna.

Acima ou nesse link, a abertura cheia de metáforas e planos detalhes de Masters of Sex. Sim, Showtime também produzia Dexter.

Quase 60 anos separam os personagens do drama da Showtime da comédia, Orange is the new black, mais uma produção de sucesso da Netflix (House of Cards foi seu primeiro grande hit), que se consolidou como exibidora de filmes e séries sob demanda, algo que está revolucionando a maneira como os programas são assistidos. Na série, também baseada em história real, Piper Chapman, uma jovem recém-empreendedora, é condenada a prisão de segurança mínima por 15 meses, por ter transportado há vários anos, uma única vez, uma carga de dinheiro do tráfico, para sua namorada da época, a traficante Alex Vause, que, surpresa!, está presa na mesma instituição.

É possível ver em OITNB todas as consequências do pioneiro estudo que Masters of Sex descreve tão bem. A principal consequência é a insegurança masculina diante da incompreensão dos desejos femininos. Insegurança refletida em tirania, como o terrível guarda George Mendez, e em submissão, como o noivo de Piper, Larry Bloom. Ou mesmo alternando os dois comportamentos extremos, como o chefe de guardas Sam Healy.


Elementos que subvertem o sub-gênero de filmes de penitenciárias são fortemente utilizados (como no episódio em que a namorada de Nicky anuncia que ficará livre). Os episódios são desenvolvidos em um formato parecido com o de Lost, com o foco variando de personagem e uso de flashbacks. Perfeita a adoção dessa estrutura, pois Orange tem uma gama de personalidades divertidíssimas e algumas medonhas, como a crente ex-viciada em metanfetamina Tiffany, a ainda viciada e ex-moradora de rua Nicky e a matriarca russa Red. Por conta do sucesso das personagens secundários, a segunda temporada da série será mais focada nelas.



Duas se destacam por motivos mais, digamos, políticos: a “butch” que esconde uma certa doçura Big Boo e a transsexual Sophia Burset, interpretadas por Lea DeLaria e Laverne Cox. Optando por escalar atrizes com a mesma identidade de gênero dos personagens, OITNB atende uma antiga reivindicação das comunidades LGBT, que reforça a presença em obras de entretenimento de artistas que vivem a causa. Fator, por exemplo, criticado pelas mesmas comunidades sobre o filme indicado ao Oscar de 2014 “Dallas Buyers Club”, em que uma transsexual é interpretada pelo ator Jared Leto. Vencedor do Oscar de melhor ator coadjuvante e também o Globo de Ouro, Leto incluiu em um de seus discursos uma piada sobre depilação.

Voltando às séries, ambas são desenvolvidas por mulheres, Michelle Ashford (Masters) e Jenji Kohan (Orange). Estão entre os melhores lançamentos do gênero no ano passado, não apenas porque refletem importantes visões femininas sobre nossa sociedade, mas também engrossam uma já longa lista de programa de TV mais ousados em seu conteúdo do que a maioria dos filmes, que abordam temas cada vez mais batidos e conservadores. Essa nova safra também apresenta boa evolução narrativa, sem as “barrigas” que se via antes até em ótimos seriados, como Sopranos (eu amo Sopranos, que fique bem claro!). Uma possível adequação ao novo modo de consumir seriados, por meio de novas mídias.

Masters of Sex e Orange is the new black são duas ótimas pedidas para se instigar com um tema tão universal. Então corra, porque as segundas temporadas estão a caminho: a de Masters está em fase de produção e Orange reestreia dia 6 de junho!